Memória
Intelectual de seu tempo

Com a morte de Oswaldino Marques, a crítica literária perde um erudito sofisticado e ao mesmo tempo capaz da dissertação didática

Rui Mourão
Especial para o Estado de Minas

Luis Tajes 26.05.99
Oswaldino Marques: abertura do debate em torno de problemas da estética no século 20

Vitimado porcâncer que já durava cerca de dois anos, em 13 de maio, morreu em Brasília o escritor Oswaldino Marques. Poeta com lugar definido na chamada geração de 45, tradutor dos mais respeitados, professor que honrou brilhantemente a cátedra na Universidade de Brasília e na University of Wisconsin, nos Estados Unidos, a contribuição verdadeiramente excepcional que nos deixou terá sido no campo da interpretação de textos e da teoria literária. No balanço que se há de fazer da crítica moderna no Brasil, será sem dúvida expressivo o crédito em seu nome.

Surgindo no momento da crise e agonia dos métodos tradicionais de abordagem da obra literária, que sofriam o impacto da mentalidade inovadora representada pelo new criticism, de procedência anglo-saxônica, Oswaldino Marques foi exatamente aquele que, mais instrumentado e mais profundamente identificado com a tendência que se implantava, pôde realizar o trabalho de maior conseqüência no sentido da nossa evolução.

Se a Afrânio Coutinho se tem de assegurar o lugar inquestionável de precursor do movimento que acabou por empolgar os nossos meios culturais, se em M. Cavalcanti Proença manda a justiça que se reconheça um analista de alto porte e grande erudito, é a Oswaldino Marques que devemos pagar tributo pela abertura do debate em torno de certos problemas fundamentais da estética contemporânea. Enquanto os primeiros, numa especialização de funções nada condenável e imprescindível para a implantação da nova técnica e nova mentalidade, dedicavam-se principalmente ao proselitismo e à exemplificação objetiva dos processos preconizados, vocacionalmente interessado em teoria literária, ele procurou desde o primeiro momento localizar as grandes matrizes e os grandes móveis daquela ação inovadora e acabou por fazer a divulgação de vasto e complexo conhecimento, intensificando extraordinariamente a área de predisposição para as audaciosas aventuras que polarizariam a inteligência brasileira, logo a seguir, com a eclosão dos movimentos de vanguarda.

Se existem divergências profundas entre o seu pensamento e as colocações dos doutrinadores mais jovens, as afinidades são indiscutíveis, a tal ponto que mais parecem vocações irmãs, apenas divergentemente disparadas, na ambição de atingir o alvo da modernidade.

O quadro amplo das preocupações que orientavam a atividade intelectual de Oswaldino Marques encontra-se muito bem representado nos Ensaios escolhidos (Civilização Brasileira, 1968), coletânea de peças ilustrativas de diferentes etapas da evolução do seu trabalho teórico e crítico. No volume, se percebe, o autor se achava tão consciente da importância fecundante do seu esforço para sistematizar uma estética entrosada com as correntes momentosas do pensamento universal, que seus estudos quase sempre assumiam o tom de dissertação didática. Este aspecto — que faz com que o artigo Traços diferenciais da poesia moderna, principalmente nas primeiras linhas, em certa medida desconcerte o leitor, que se supõe diante de algo como uma conferência para leigos — constitui a garantia de um desdobrar de análise que só se esgota quando todos os flancos do fenômeno real tenham sido examinados, numa exacerbação de rigor que nos traz à mente a laboriosa busca das pesquisas de laboratório — um senso de agudeza quase microscópica, precisão e clareza que só encontra paralelo nas operações matemáticas.

Inteligência procurando trabalhar com objetividade deveras consistente, Oswaldino Marques, que tinha o gosto de esgrimir idéias no plano mais elevado, violentava-se para não abandonar o chão firme das verdades científicas positivas e resvalar para os ‘‘mares tão traiçoeiros’’ da lógica pura, repetindo os ‘‘estudo(s) metafórico(s)’’ de ‘‘retóricos incorrigíveis’’, desejosos de ‘‘exibir seus fogos-de-bengala’’. As soluções que encontrava para ousadas incursões prospectoras no terreno movediço das idéias abstratas era o forte lastreamento bibliográfico e uma como carapaça cautelosa de que se revestia, para nunca adiantar conclusões apressadas. Conservando-se invencível na sua combatividade, não aceitava sentenças passadas em julgado e invariavelmente se dispunha a garrotear o pensamento mais prestigioso, para submetê-lo ao crivo estreito de uma análise deglutidora. Como as coisas assim se passavam, o autor de Teoria da metáfora consolidou o prestígio de um dos nossos mais autorizados críticos de idéias. Mas quem deseje conhecer a sua capacidade de formulação filosófica original que passe os olhos pelas páginas de Canto e plumagem das palavras, onde toda uma concepção da origem da linguagem é esboçada.

Não sendo homem de meias medidas, o levantamento dessa erudição de apoio acabava por assumir aspectos radicais de caudal de alto curso, com prodigiosa massa de conhecimentos arrolada, permitindo ao leitor de qualquer dos seus textos a ampla e confortadora sensação de não se achar usufruindo de atividade intelectual circunscrita, antes escancarada para horizontes de participação maior do espírito, dentro daquele universo conflitual do conhecimento em que todas as barreiras e limitações desaparecem e o que se contempla são os arrojos extremos da inteligência, a experimentar as suas máximas possibilidades. Nas mãos do exegeta das obras de criação, este exacerbar de processos é responsável pela abastança luxuriante da análise, mas ainda aí ele se encontra, antes de qualquer coisa, a serviço de uma nunca suficientemente satisfeita ambição de objetividade.

Ao se encontrar no campo mais específico da lingüística e da estilística, a sua argúcia interpretativa, desde logo e desinibidoramente, encontrava meios de semear um concreto estaqueamento de sustentação — e percebemos que esse era sem dúvida o seu espaço vital de eleição. A desenvoltura do ensaísta tornava-se absoluta e o víamos a exibir o vasto e múltiplo conhecimento do grande especialista em que se transformara. Oswaldino Marques podia transitar com facilidade desde as amplas generalizações compreensivas até o debate sobre particularidades da mais alta sofisticação. Nos limites cobertos pelas duas disciplinas é que se situavam suas contribuições de maior relevância, como o estudo de profundidade geológica que levou a efeito da linguagem rosiana, ou os trabalhos pioneiros de sistematização de idéias em torno da metáfora, da semiótica e da estrutura fônica do verso moderno.

O rigor levado às últimas conseqüências nem sempre permitiu ao crítico ultrapassar o exame das camadas subterrâneas das obras que examinava. Quando o olho se tornava extremamente exigente e as sutilezas da percepção se acumulavam em profusão incontrolável, a operação analítica acabava se desenvolvendo em câmara lenta, realizando o levantamento sistemático de aspectos escafândricos parciais e retardando sobremaneira a operação totalizadora. A sua ampla e abrangente concepção crítica, entretanto, que preconizava uma aproximação do texto através do franqueamento de todos os seus estratos e todos os ângulos possíveis de entendimento, envolvendo inclusive uma concepção sociológica do fenômeno, continuava sempre em pé. Quem desejar tomar conhecimento de uma das mais audaciosas aventuras de análise literária no Brasil que percorra as páginas do monumental Laboratório poético de Cassiano Ricardo.

O entendimento globalizante da arte e da literatura era sustentado por sólido conhecimento dialético, presente na base da sua visão materialista do mundo. Tal orientação, que entre nós quase sempre tem conduzido ao primarismo, em grande medida era responsável pelo lastro complexo do raciocínio de Oswaldino Marques, pois toda a sua atividade intelectual se converteu no esforço de sistematizar um pensamento que abrangesse as mais arrojadas conquistas da estética contemporânea e se mantivesse isento de tropeços de natureza idealista. À medida que logrou inteiramente este intento, sua obra se constitui espetáculo raro de robustez e modernidade — marco que é, na cultura brasileira, de uma filosofia literária que se deseja liberta ao mesmo tempo da mentalidade diletante e das falsas colocações de uma ortodoxia de viseiras.

O estudo da personalidade intelectual de Oswaldino Marques ficaria ainda incompleto se não se fizesse referência às implicações do seu pensamento com os aspectos dinâmicos da tecnologia mais avançada dos nossos dias. Tratando-se de homem plantado em seu tempo, interessado em realizar a cultura mais viva, ele procurava encontrar, na particularidade da fenomenologia literária, as estruturas correspondentes ao arcabouço espiritual do bicho homem, que aprendeu os segredos da desintegração atômica e perscruta os abismos siderais, no limiar da sua arrancada para as galáxias. A embocadura estilística dos ensaios que nos são dados a ler é de tal natureza que, através do simples exame do seu estrato semântico, já somos despertados pela invicta modernidade da inteligência por detrás deles se movimentando. O escritor está sempre a usar vocabulário nascido do último esforço de denominação no campo da técnica — radioscopia, circuito, controle remoto, teleguiado — ou forjando imagens e metáforas que correspondem a clarões sintetizadores de uma cosmovisão típica do nosso tempo: ‘‘terraplenar o solo formal do poema e cortá-lo de pistas ultramodernas para a passagem da crítica motorizada’’; ‘‘Camera man empenhado na produção de um fabuloso documentário, Guimarães Rosa, em vez de filmar’’; ‘‘Através da fina retícula perceptual do grande escritor, coa-se o mundo quintaessenciado em suas radiações prismáticas’’.

Esta linguagem, quase sempre rebuscada e algo retórica, denota um lastro afetivo indisfarçável, mesmo quando o assunto abordado é da ordem mais abstrata. E aí se encontra, indiscutivelmente, mais um traço a aproximar dele as vanguardas neoiluministas das últimas décadas.



Rui Mourão é escritor e diretor do Museu da Inconfidência de Ouro Preto, em Minas Gerais.