Memória
O termo e a viagem
Auto-epitáfio
Oswaldino aqui jaz
De vez o polêmico,
Índole indomada.
Zero contumaz
Na vida foi nada —
Nem mesmo acadêmico
Carlos Tavares
Especial para o Correio
Dona Maria José vai ter muito
trabalho para localizar nas pilhas de papéis avulsos guardados em
prateleiras e gavetas do escritório as anotações de seu marido, o poeta
Oswaldino Marques, sobre Cecília Meireles e várias correntes
literárias, dos formalistas russos ao new criticism. Oswaldino
costumava dizer que, além de gostar muito da poesia de Cecília, devia
muito a ela porque foi a primeira pessoa que o apresentou ao mundo
intelectual carioca há mais de 60 anos.
Deverá encontrar também cópias de correspondências para
os amigos — ele tirava cópia de tudo o que escrevia, era um verdadeiro
arquivista, talvez herança de seu trabalho como funcionário da
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro dos anos 40, quando chegou à
capital com pouco mais de 20 anos. Nessa época confidenciou a um amigo,
que depois o traiu, que o seu sonho era ser faroleiro e para isso fez e
passou num concurso público, em São Luis do Maranhão, sua cidade natal,
mas desistiu da idéia porque seu pai não aprovou a decisão e ele o
amava demais para contrariá-lo.
Queria levar para o farol os livros de Kant e um
violino, que mal sabia tocar, além de blocos de anotações e canetas,
lápis, muitos lápis, o material que lhe serviu de bússola a vida
inteira para seguir viagem pelo cotidiano afora de tantas decepções,
sofrimentos e resistência. Muita resistência! Em seu devaneio de
juventude, a razão, contudo, era uma espécie de leme que o permitia ir
e voltar dos delírios de poeta e criador com a mesma desenvoltura com
que cumpria seus deveres de cidadão perante o movimento natural da vida
e das coisas. Aliás, a imagem do farol é muito forte e significativa
tratando-se de um desejo que nasce de alguém como o Poeta.
Oswaldino era professor e como o barqueiro do conto de
Goethe (um de seus autores preferidos) sua principal tarefa era guiar
os alunos pelo oceano encantado e perigoso das palavras e seus
significados literários, procurando afastar de seus caminhos os
escolhos e os traiçoeiros golfos dos autores da literatura de fachada.
Isso ele sabia fazer com a perícia de um pesquisador de bancada que
procura decifrar o núcleo e os subnúcleos do átomo. Não passava a mão
na cabeça de ninguém por interesse em integrar as históricas e
tradicionais igrejinhas culturais de seu tempo. Oswaldino era um homem
sério! Se escrevesse algo a título de uma análise literária mais
aprofundada ou um simples comentário sobre o texto de alguém, o autor
podia apostar que ele estava sendo sincero.
Meu último encontro com o Poeta que batizou meus contos
de prosoemas e que gostava de dar nome às coisas da arte literária e da
vida foi muito triste. Evitava visitá-lo nos últimos meses, não por
covardia, mas porque talvez no íntimo soubesse ou sentisse que ele
preferiria que eu não o visse sendo nocauteado impiedosamente por um
câncer de pulmão. Oswaldino era um homem simples, vaidoso em relação à
sua imagem física. Usava uma barba branca (só o conheci de barba
branca, quando Lourenço Cazarré o apresentou a mim em 1988), bem
escanhoada, permanecia lúcido e vivaz mesmo aos 82 anos, pouco antes de
descobrir que o processo insidioso da doença iniciava sua devastação,
no final do ano 2000.
Estava numa cadeira de rodas, a barba já não exibia
aquela aparência de espuma ou de neve, os olhos pareciam varar tudo que
fixava com o rasgo e a profundidade de uma lâmina afiada que busca
retorcer as vísceras do mundo, da palavra, dos corpos e das coisas ao
seu redor cuja massa física ou imagem já não conseguia definir em seu
formato real. Não falava mais, ou falava muito pouco, muitas vezes
tentando se comunicar comigo por meio de ruídos e gestos. As únicas
vezes que ele conseguiu pronunciar palavras em mais de uma hora da
dolorosa visita, em março deste ano, foi para repetir o meu nome, em
dois momentos. Dona Maria José tentava traduzir a nossa conversa feita
de gestos, olhares, curtos monólogos, pensamentos.
Soube que seu corpo foi cremado. No seu testamento cuja
maior herança para os filhos, netos e mulher, outros familiares, será a
sua cultura e a sua visão de mundo, aparece um trecho no qual
recomenda, com uma leve severidade, que não pratiquem os rituais
católicos da morte quando ele ‘‘viajar’’: o velório, o coro de
lágrimas, as coroas de flores, o caixão aberto na sala com o corpo
indefeso do morto a exibir no rosto sua efêmera passagem, sua força
arremessada ao vácuo do inominável, sua eterna fragilidade, a
inevitável brancura da maquilagem das sombras que operam no futuro o
silêncio da carne, mas não da sua existência.
Não, de modo algum. Ele foi cremado e suas cinzas
simbolizam no ar, na terra e no Farol de São Luís muito mais a sua
permanência entre nós na forma da poesia, da música das esferas dos
deuses com os quais dialogava — J.S. Bach, Brahms, Dostoiévski, Walt
Whitman, Ezra Pound, Eliot, Gaudí, Guimarães Rosa e os outros. Sobre o
João de Sagarana, amigo de Oswaldino, este tinha razão quando dizia que
as pessoas não morrem, elas ficam encantadas. Mas pessoas especiais; a
frase não é para qualquer um, não é Dona Maria José?
Carlos Tavares é jornalista e escritor.
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