Brasília, sábado, 17 de maio de 2003

  

Memória
O termo e a viagem

Auto-epitáfio

   Oswaldino aqui jaz De vez o polêmico, Índole indomada. Zero contumaz Na vida foi nada — Nem mesmo acadêmico


Carlos Tavares
Especial para o Correio

Dona Maria José vai ter muito trabalho para localizar nas pilhas de papéis avulsos guardados em prateleiras e gavetas do escritório as anotações de seu marido, o poeta Oswaldino Marques, sobre Cecília Meireles e várias correntes literárias, dos formalistas russos ao new criticism. Oswaldino costumava dizer que, além de gostar muito da poesia de Cecília, devia muito a ela porque foi a primeira pessoa que o apresentou ao mundo intelectual carioca há mais de 60 anos.

  Deverá encontrar também cópias de correspondências para os amigos — ele tirava cópia de tudo o que escrevia, era um verdadeiro arquivista, talvez herança de seu trabalho como funcionário da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro dos anos 40, quando chegou à capital com pouco mais de 20 anos. Nessa época confidenciou a um amigo, que depois o traiu, que o seu sonho era ser faroleiro e para isso fez e passou num concurso público, em São Luis do Maranhão, sua cidade natal, mas desistiu da idéia porque seu pai não aprovou a decisão e ele o amava demais para contrariá-lo.

  Queria levar para o farol os livros de Kant e um violino, que mal sabia tocar, além de blocos de anotações e canetas, lápis, muitos lápis, o material que lhe serviu de bússola a vida inteira para seguir viagem pelo cotidiano afora de tantas decepções, sofrimentos e resistência. Muita resistência! Em seu devaneio de juventude, a razão, contudo, era uma espécie de leme que o permitia ir e voltar dos delírios de poeta e criador com a mesma desenvoltura com que cumpria seus deveres de cidadão perante o movimento natural da vida e das coisas. Aliás, a imagem do farol é muito forte e significativa tratando-se de um desejo que nasce de alguém como o Poeta.

  Oswaldino era professor e como o barqueiro do conto de Goethe (um de seus autores preferidos) sua principal tarefa era guiar os alunos pelo oceano encantado e perigoso das palavras e seus significados literários, procurando afastar de seus caminhos os escolhos e os traiçoeiros golfos dos autores da literatura de fachada. Isso ele sabia fazer com a perícia de um pesquisador de bancada que procura decifrar o núcleo e os subnúcleos do átomo. Não passava a mão na cabeça de ninguém por interesse em integrar as históricas e tradicionais igrejinhas culturais de seu tempo. Oswaldino era um homem sério! Se escrevesse algo a título de uma análise literária mais aprofundada ou um simples comentário sobre o texto de alguém, o autor podia apostar que ele estava sendo sincero.

  Meu último encontro com o Poeta que batizou meus contos de prosoemas e que gostava de dar nome às coisas da arte literária e da vida foi muito triste. Evitava visitá-lo nos últimos meses, não por covardia, mas porque talvez no íntimo soubesse ou sentisse que ele preferiria que eu não o visse sendo nocauteado impiedosamente por um câncer de pulmão. Oswaldino era um homem simples, vaidoso em relação à sua imagem física. Usava uma barba branca (só o conheci de barba branca, quando Lourenço Cazarré o apresentou a mim em 1988), bem escanhoada, permanecia lúcido e vivaz mesmo aos 82 anos, pouco antes de descobrir que o processo insidioso da doença iniciava sua devastação, no final do ano 2000.

  Estava numa cadeira de rodas, a barba já não exibia aquela aparência de espuma ou de neve, os olhos pareciam varar tudo que fixava com o rasgo e a profundidade de uma lâmina afiada que busca retorcer as vísceras do mundo, da palavra, dos corpos e das coisas ao seu redor cuja massa física ou imagem já não conseguia definir em seu formato real. Não falava mais, ou falava muito pouco, muitas vezes tentando se comunicar comigo por meio de ruídos e gestos. As únicas vezes que ele conseguiu pronunciar palavras em mais de uma hora da dolorosa visita, em março deste ano, foi para repetir o meu nome, em dois momentos. Dona Maria José tentava traduzir a nossa conversa feita de gestos, olhares, curtos monólogos, pensamentos.

  Soube que seu corpo foi cremado. No seu testamento cuja maior herança para os filhos, netos e mulher, outros familiares, será a sua cultura e a sua visão de mundo, aparece um trecho no qual recomenda, com uma leve severidade, que não pratiquem os rituais católicos da morte quando ele ‘‘viajar’’: o velório, o coro de lágrimas, as coroas de flores, o caixão aberto na sala com o corpo indefeso do morto a exibir no rosto sua efêmera passagem, sua força arremessada ao vácuo do inominável, sua eterna fragilidade, a inevitável brancura da maquilagem das sombras que operam no futuro o silêncio da carne, mas não da sua existência.

  Não, de modo algum. Ele foi cremado e suas cinzas simbolizam no ar, na terra e no Farol de São Luís muito mais a sua permanência entre nós na forma da poesia, da música das esferas dos deuses com os quais dialogava — J.S. Bach, Brahms, Dostoiévski, Walt Whitman, Ezra Pound, Eliot, Gaudí, Guimarães Rosa e os outros. Sobre o João de Sagarana, amigo de Oswaldino, este tinha razão quando dizia que as pessoas não morrem, elas ficam encantadas. Mas pessoas especiais; a frase não é para qualquer um, não é Dona Maria José?


Carlos Tavares é jornalista e escritor.