Oswaldino Marques 1916-2003

Poeta, tradutor, crítico literário. O marxista doce-amargo que primou pelo rigor intelectual e apreciava vinho e música clássica

Sérgio de Sá
Da equipe do Correio

Em 1997, designado para fazer um perfil do poeta, tradutor e crítico literário Oswaldino Marques, reencontrei o homem franzino, de barba branca, que havia alguns anos fora gentil o suficiente para dar boa nota em um curto ensaio de entusiasmo juvenil sobre o conto O cobrador, de Rubem Fonseca. Sabendo do rigor intelectual de Oswaldino, aquilo apareceu como incentivo para continuar próximo à literatura. E surgiu, no momento da entrevista, como recordação calorosa ao vislumbrá-lo cercado de seus muitos discos e livros no apartamento da Asa Norte. O mundo pareceu ideal.

O professor aposentado de teoria literária da Universidade de Brasília tentava terminar um ensaio sobre a ‘‘imagética’’ na obra de Cecília Meireles. Mas andava bastante melancólico. Voltamos a nos ver. Depois do perfil publicado no Pensar, ele telefonou umas três ou quatro vezes para que pudéssemos conversar, comer bolo com vinho. Ou ouvir música clássica, em um ritual de profundo respeito à composição musical, quase adorniano. O professor dispunha as caixas de som na sala para que a experiência fosse a mais próxima possível do concerto ao vivo de uma orquestra. Duas cadeiras também estrategicamente colocadas. Silêncio. E o resto cabia à música ligada a pleno volume. (Os vizinhos não gostavam.)

O último contato com Oswaldino foi para saber como andava o tal texto sobre Cecília, tinha interesse em publicá-lo por ocasião do centenário da poeta. Ele não o havia terminado, ou talvez o tivesse praticamente concluído, mas não havia vontade de mostrá-lo por conta da exigência com o próprio trabalho. O vigor, é verdade, já não era o mesmo. Oswaldino Marques morreu aos 86 anos na última terça-feira, dia 13 de maio, vítima de câncer.

‘‘Dado que não professo modalidade alguma de credo religioso, sendo, como sou, materialista provado, por estar persuadido da preexistência da matéria ao espírito, bem como da ausência na ordem natural de qualquer energia ou poder transcendente, — ficará interdito, por ocasião de minha morte, todo tipo de ritual religioso, aí incluídas preces, confissão e extrema-unção.’’ O texto faz parte de declaração registrada em cartório por Oswaldino e seguida pelos filhos. Seu corpo foi cremado na quinta-feira.

A literatura perde o autor de 16 obras (ensaio e poesia), entre as quais se destacam O laboratório poético de Cassiano Ricardo e Acoplagem no espaço. Perde um polemista capaz de bater firme em Carlos Drummond de Andrade (uma crítica sobre Poesia até agora), de travar duelos raivosos com o conterrâneo Josué Montello. Um inconformado com o status quo, sem concessões a fazer ao gosto comum, intolerante com superficialidades, iconoclasta, crítico dos ‘‘corretores de glória’’ e das ‘‘meretrizes da literatura’’, profundo conhecedor das correntes e veias literárias brasileiras, tradutor milimétrico de poesia em língua inglesa.

No poema Rabiscos para um auto-retrato, escreve: ‘‘Sua mais apaixonada forma de amor — a indignação./ Seu orgulho envolve na mesma repulsa os usurpadores e os falsários do dia./ Entre a estrela e o charco prefere o reflexo.’’ Em tempo de desengajamento intelectual, é para se lamentar profundamente a morte desse marxista doce-amargo ‘‘alimentado pela contemplação do impulso criador humano’’. A música, sua maior paixão, ficará mais baixa. A literatura, menos indignada.

Fonte: Correio Braziliense, 17/05/2003